Jack
Kerouac talvez seja o mais emblemático, ainda que não o meu
escritor preferido da geração beat. A gasolina de Corso e
o corte seco de Burroughs fizeram mais a minha cabeça. Ambos pareciam
ter menos fé nas coisas e valores americanos, e por isso resultavam
mais ácidos e divertidos nas suas ondas de cinismo. Em todo caso,
On The Road foi o primeiro livro beat que caiu nas minhas mãos e,
talvez por isso, o mais decisivo. Um dia antes de fazer minha primeira viagem
de adolescente "pé na estrada", rumo à São
Paulo, um amigo, na época produtor da banda Os Replicantes, mandou
o livro direto da rotativas (?). Thanks Moa. Tradução do Peninha
Bueno, que escrevia, em algum lugar, que tinha voltado de carona de Los
Angeles até Porto Alegre. Saquei que era uma onda e aos 19 anos comecei
a acreditar que era uma mistura de poeta beat com músico de jazz.
Penso que estou curado, em todo caso... Not bad. Sempre me senti estrangeiro.
Originalmente este texto foi publicado no jornal Zero Hora, em memória aos 30 anos de morte de Jack Kerouac. |
O Anjo Bêbado das estradas. por mauro dahmer São Fransisco. Noite. Enquanto um bando de girafas maneja garfos e facas para comer seu delicioso churrasco, um conversível solitário se acidenta saltando o muro de cactus em flor. Apesar do forte estrondo, o rapaz que dorme na casa não percebe nada e, em sono profundo, encarna um zumbi de sua época. Nem morto nem vivo, protege seu estado mental daquilo que o papai pós guerra tenta lhe enfiar goela abaixo. Cool. Na vitróla da década de 50 tocam Chat Baker ou as Quatro Estações. Sexo, Jazz e paraísos artificiais. Amanhã é dia de pegar a estrada de volta para Nova Iorque. Nada de entrar para o corinho dos contentes. Mais tarde aguns críticos vão dizer que ele e seus amigos eram apenas doidões em busca de aventuras. Estavam enganados. Jack Kerouac escreveu como um príncipe de sua época e como ninguém fizera antes. Jean-Louis Kerouac nasceu em 1922, filho da voluntariosa classe operária americana que venceu guerras e batalhas, aceditou na liberdade e, supostamente, ajudou a construir a maior democracia do Ocidente, daqual todos os seus filhos deveria se orgulhar. De ascendência franco-canadense e formação católica, numa américa protestante, Jack Kerouac teve seu quinhão trágico na vida real e dele fez a sua escrita. Sorte nossa. Depois de tentar remediar a situação financeira da família conquistando uma bolsa de estudos jogando futebol americano na Columbia University, começou a andar com uma turma da pesada pelas ruas de Nova Iorque. Allen Ginsberg, Neal Cassidy, Lucien Carr e William Burroughs, entre outros. Entrou para a marinha mercante, onde provavelmente adquiriu o gosto pela vida errante e pela aventura. Em terra, tomando o rumo da costa oeste, inventou uma América nova que ficava no meio de uma estrada, no nada. Descobriu na batida do jazz, em hotéis baratos e no convívio com seus amigos uma nova onda. Já tinha publicado The Town and the City, quando numa de suas viagens escreveu uma das novelas que definitivamente mudariam sua vida e a cara do mundo em que vivemos hoje. Em On The Road, Keourac inaugurou sua prosa espontânea, influenciada pelos beats do jazz e pela escrita automática dos surrealistas. Inventou algo estranho demais para o seu tempo e pagou caro por isso. O livro demorou sete anos para ser publicado e lançou ao estrelato da literatura americana um Kerouac já cansado de tantas baladas, desencantos e confusões. No contrafluxo do reconhecimento público, foi consumido pela fama repentina que On the Road lhe proporcionou e, ao mesmo tempo, pelas críticas e tentativas de ridicularizá-lo. Figurinha difícil e estranha para os olhos da classe média, Kerouac foi amargando uma decadência pessoal que misturou muito álcool, holofotes, conservadorismo político e algum budismo por tabela. Inaugurou uma trilha poética que mais tarde, para desgosto próprio, seria trilhada por milhares de jovens entusiasmados com a contracultura. Para a garotada de hoje Kurt Cobain talvez seja o exemplo mais próximo, mas é a trilha de hippies, punks e outros tantos. Fazem 30 anos que Jack Kerouac, em função de sua vida atormentada e de seus excessos alcóolicos, abandonou este planeta. Tinha 47 anos em 21 de outubro de 1969, dia de sua morte, e deixou umlegado literário estimado hoje em U$10 milhões. Como convém à maioria das sagas americanas, sua herança hoje é disputadada ferreamente nos tribunais de justiça. Coisa para advogados e gente menos ligada às letras. Para nós, filhotes da contracultura, felizmente deixou bons livros e uma personalidade contraditória e enigmática o suficiente para servir de referência ao que mais tarde viria a ser a Pop Art. Salvou-nos do tédio e do bom-mocismo, ainda que muita gente até hoje não o perdoe por isso. Jack Kerouac, como tantos outros escritores, foi um anjo bêbado que, além de sua obra, inspirou uma infinidade de canções, livros, filmes, atitudes e tributos ao seu postulado criativo. Que descanse em paz o grande escritor jovem e poeta das estradas. Ele está no meio de nós. *artigo publicado no jornal Zero Hora em 23 de outubro de 1999 |
Uma pincelada muito bem pintada. |