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O gabinete do dr.Calligaris

por mauro dahmer

Contardo Calligaris nasceu em 1948, em Milão. Estudou em Genebra e Paris, aonde iniciou sua formação psicanalítica, e desembarcou no Brasil na época do plano Cruzado, em 1985. Acompanhei alguns de seus seminários em Porto Alegre quando a cidade parecia arder numa febre de debates e confrontos ideológicos sobre a pós-modernidade, socialismo e psicanálise. Pelo menos na cabeça de algumas turmas que circulavam pelo Bom Fim, bairro boêmio e universitário de Porto Alegre. Rapidamente Contardo se tornou uma figura aglutinadora entre os lacanianos da cidade e uma filiação para muita gente. Atualmente mora entre Boston e São Paulo, e escreve para a Folha de São Paulo sobre os efeitos da modernidade nos nossos hábitos e costumes.

Originalmente esta entrevista foi publicada na revista Simples. A conversa aconteceu durante um almoço em São Paulo e me custou a primeira multa de trânsito na cidade.

Com vocês o filé.

Mauro – Viajar parece que sempre fez parte da sua vida. Você nasceu em Milão, morou em diversas cidades da Europa, no Brasil e nos EUA, e parece ser um sujeito bastante à vontade com esse negócio de aviões, migrações e articulações subjetivas sobre a vida moderna. A condição de estrangeiro mudou muito durante esse tempo?

Contardo- Primeiro, certamente do ponto de vista prático porque com a rapidez das viagens mudaram completamente as condições psicológicas das migrações. Mas o curioso é que até os anos 50 as imigrações eram processos um tanto irreversíveis e muito mais radicais. É fácil esquecer que até o fim dos anos 60, para fazer uma simples ligação telefônica do Brasil para os Estados Unidos eram necessárias horas de espera e telefonistas. Hoje os brasileiros que moram em Boston ligam para casa semanalmente, falam quanto tempo quiserem, ou podem comprar acessos à internet. Isso mudou as condições subjetivas da viagem e não é só que tudo tenha ficado mais fácil. Há outra coisa que me concerne especifiamente, mas concerne a qualquer viajante: eu acho que viajar deveria ser proibido ou vivamente desaconselhável, em geral.

(risos)

Mauro - Ops! Você dizendo isso? É o fim da história e do ideal de estrangeiro? O que aconteceu? No more trips ou apenas um pequeno truque?

Contardo- O problema é o seguinte: o único lugar aonde pode haver verdadeiramente uma razão de fundo para se morar, ficar, envelhecer e morrer é o lugar aonde você nasceu e não há outro. Até porque, às vezes, as razões se perdem na noite dos tempos. Seus avós vieram pra cá e isso é o bastante para ficar. O problema é que a partir do momento que você vai embora uma vez, não estou falando em ir a Paris em visitar o Louvre, estou dizendo que você decida tentar a vida em outro lugar; à partir daquele momento você nunca mais vai encontrar outra razão que tenha o mesmo valor da primeira. A partir do momento em que você partiu, se não estiver contente, e nada é perfeito, por que não tentar outro lugar?

 

Mauro- No seu livro "A adolescência", lançado recentemente pela coleção Folha Explica, você fala da adolescência como sendo uma invenção deste século, principalmente no pós-guerra capitalista. Trata-se apenas de um fenômeno de marketing?

Contardo - Não há como entender a realidade em que adolescentes e pais vivem sem entender que a adolescência é, sobretudo na pós-modernidade, desde os anos 50, um ideal cultural global. Não só para o mundo inteiro mas porque vale tanto para os adultos quanto para os adolescentes. Para os adolescentes isso acaba sendo um problema.

Mauro - Pais e filhos desejando as mesmas marcas de tênis, as mesmas roupas, músicas e modos de vida.

Contardo - Isso é uma complicação psíquica para eles. Quando eu era adolescente, nos anos 60, nossa perspectiva era nos tornarmos adultos, mas olhavamos para os adultos não necessariamente para imitá-los mas inclusive para fazer exatamente o contrário. Não era muito complicado porque os adultos eram pessoas que gostavam de coisas muito diferentes das que eu gostava, usavam gravatas à partir das 8 da manhã, falavam e se divertiam com outras coisas. A partir dos anos 60 isso virou um problema porque os adolecentes passaram a olhar para os adultos e encontram imitações de adolescentes. Fica muito complicado entender o que se espera dele, o que significa crescer e o que significa se tornar adulto.

 

Mauro – Além de um aumento no fluxo de hormônios, o que mais constitui essa idealização? Foi o capitalismo selvagem ou a K.A.O.S. que começou com tudo? Trata-se apenas de lógica comercial? A contracultura não teria um papel importante nessa história?

Contardo - A explicação marxista é fácil e boa, mas não sei se é toda. Após a segunda guerra mundial, com a retomada econômica do capitalismo americano, o consumo de massa não seria suficiente para produzir o crescimento desejado, mesmo que todo mundo tivesse a perspectiva de possuir uma casa, televisão, geladeira e outros bens de consumo.

No começo dos anos 50 isso aparece explicitamente em Madison Avenue, que é aonde nasce o grande marketing americano. Para produzir o crescimento era necessário apostar na diversidade como valor, ou seja, não dizer mais que você tem que ter a mesma coisa que seu vizinho, mas que você tem que se diferenciar dele. Grande parte da contracultura dos anos 60 foi produzida por Madison Avenue e, como efeito de marketing, foi absolutamente necessária para o capitalismo crescer e produzir essa necessidade de diferenciação.

 

Mauro – Nesse jogo de espelhos o Brasil parece viver uma contradição estranha. Ao mesmo tempo em que é valorizado no mundo inteiro por sua identidade cultural, grande parte do que é consumido pela classe média e afins tem cara de sub-produto com gosto americano.

 

Contardo - Isso é uma contradição de muitos países de origem colonial, com exeção dos Estados Unidos porque triunfaram. A Austrália tem o mesmo problema. No Brasil vem de longe, claramente porque o estrangeirismo das elites brasileiras é muito antigo. Aconteceu uma ação deliberada de Portugal visando impedir durante 300 anos que houvesse a formação de elites no país. A idéia era guardar o Brasil na dependência cultural do que acontecia lá fora. Não era possível saber o que era ser elegante se você não fosse comprar sua camisa em Paris ou Londres.

 

Mauro - Atualmente o jovem não gosta muito de política e tem boas razões para isso. Levando em conta a mediocridade da participação política oferecida, não é estranho que ele fique prostrado. Por outro lado, é possível enchergar nos protestos em Praga, Seattle e Washington algumas novidades, mas a democracia ainda funciona?

Contardo - Do ponto de vista político, a minha geração provavelmente é a última que acreditou na idéia democrática. Eu acho que as gerações seguintes aos poucos se deram conta de que a prática da democracia nos foi roubada. Por mais que a democracia continue sendo uma espécie de ideal, a sua prática nos foi roubada porque o individuo médio – eu você e o cara ali da esquina, e os jovens ainda menos, nós não temos absolutamente nenhuma influência sobre 90% do que é decidido na nossa vida. Mesmo que você vote em todas as eleições está claríssimo que você não tem nada a ver com isso, e que você não é representado de nenhuma maneira. O que são representados são os lobbies mas nunca eu e tu. Eu acho interessante que desse ponto de vista os jovens se preocupem mais com espaços pequenos aonde consigam realizar experiências e vivências de democracia concreta. É legítimo esse desinteresse na política. A questão é que em vez de ficar me indignando porque os jovens não querem votar, ou não se interessam pela política, a minha pergunta é: Qual política? Antes de se indignar é preciso se perguntar qual é a realidade do exercício democrático que está sendo proposto. Nenhum! Nesse caso, por exemplo, é exatamente isso que os jovens de Praga, Seattle e Washington estão procurando. Interessa só os espaços de democracia concreta e, de uma certa forma, eles entram nessas ONGs sobretudo porque ali há um exercício de democracia completa.

Mauro - As ações globais parecem ser um caminho novo mas a horizontalidade na comunicações, em forma e conteúdo, às vezes lembra mera panfletagem. O acesso é rápido e franco, porém, em grande parte rasteiro. Tanto pode ser uma revolução via Internet ou mais uma invenção de Madson Avenue.

Contardo - As trocas podem ser menos intensas mas uma coisa que todo mundo sabe, principalmente os governos totalitários, é que Washington, Seattle e Praga não teriam acontecido sem a Internet. Divulgar esses acontecimentos e convocar manifestantes hoje não custa quase nada, e mandar um e-mail ou mil e quinhentos é a mesma coisa. A possibilidade de mobilização da rede é imensa. Bom, é claro que a gente recebe um monte de merda…mas daí eu deleto e pronto.

 

Publicado originalmente na revista Simples? 7 - 2000

 

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