![]() Originalmente este texto foi publicado no jornal Zero Hora, em memória aos 30 anos de morte de Jack Kerouac. |
O Anjo Bêbado das estradas. por mauro dahmer São Fransisco. Noite. Enquanto um bando de girafas maneja garfos e facas para comer seu delicioso churrasco, um conversível solitário se acidenta saltando o muro de cactus em flor. Apesar do forte estrondo, o rapaz que dorme na casa não percebe nada e, em sono profundo, encarna um zumbi de sua época. Nem morto nem vivo, protege seu estado mental daquilo que o papai pós guerra tenta lhe enfiar goela abaixo. Cool. Na vitróla da década de 50 tocam Chat Baker ou as Quatro Estações. Sexo, Jazz e paraísos artificiais. Amanhã é dia de pegar a estrada de volta para Nova Iorque. Nada de entrar para o corinho dos contentes. Mais tarde aguns críticos vão dizer que ele e seus amigos eram apenas doidões em busca de aventuras. Estavam enganados. Jack Kerouac escreveu como um príncipe de sua época e como ninguém fizera antes. Jean-Louis Kerouac nasceu em 1922, filho da voluntariosa classe operária americana que venceu guerras e batalhas, aceditou na liberdade e, supostamente, ajudou a construir a maior democracia do Ocidente, daqual todos os seus filhos deveria se orgulhar. De ascendência franco-canadense e formação católica, numa américa protestante, Jack Kerouac teve seu quinhão trágico na vida real e dele fez a sua escrita. Sorte nossa. Depois de tentar remediar a situação financeira da família conquistando uma bolsa de estudos jogando futebol americano na Columbia University, começou a andar com uma turma da pesada pelas ruas de Nova Iorque. Allen Ginsberg, Neal Cassidy, Lucien Carr e William Burroughs, entre outros. Entrou para a marinha mercante, onde provavelmente adquiriu o gosto pela vida errante e pela aventura. Em terra, tomando o rumo da costa oeste, inventou uma América nova que ficava no meio de uma estrada, no nada. Descobriu na batida do jazz, em hotéis baratos e no convívio com seus amigos uma nova onda. Já tinha publicado The Town and the City, quando numa de suas viagens escreveu uma das novelas que definitivamente mudariam sua vida e a cara do mundo em que vivemos hoje. Em On The Road, Keourac inaugurou sua prosa espontânea, influenciada pelos beats do jazz e pela escrita automática dos surrealistas. Inventou algo estranho demais para o seu tempo e pagou caro por isso. O livro demorou sete anos para ser publicado e lançou ao estrelato da literatura americana um Kerouac já cansado de tantas baladas, desencantos e confusões. No contrafluxo do reconhecimento público, foi consumido pela fama repentina que On the Road lhe proporcionou e, ao mesmo tempo, pelas críticas e tentativas de ridicularizá-lo. Figurinha difícil e estranha para os olhos da classe média, Kerouac foi amargando uma decadência pessoal que misturou muito álcool, holofotes, conservadorismo político e algum budismo por tabela. Inaugurou uma trilha poética que mais tarde, para desgosto próprio, seria trilhada por milhares de jovens entusiasmados com a contracultura. Para a garotada de hoje Kurt Cobain talvez seja o exemplo mais próximo, mas é a trilha de hippies, punks e outros tantos. Fazem 30 anos que Jack Kerouac, em função de sua vida atormentada e de seus excessos alcóolicos, abandonou este planeta. Tinha 47 anos em 21 de outubro de 1969, dia de sua morte, e deixou umlegado literário estimado hoje em U$10 milhões. Como convém à maioria das sagas americanas, sua herança hoje é disputadada ferreamente nos tribunais de justiça. Coisa para advogados e gente menos ligada às letras. Para nós, filhotes da contracultura, felizmente deixou bons livros e uma personalidade contraditória e enigmática o suficiente para servir de referência ao que mais tarde viria a ser a Pop Art. Salvou-nos do tédio e do bom-mocismo, ainda que muita gente até hoje não o perdoe por isso. Jack Kerouac, como tantos outros escritores, foi um anjo bêbado que, além de sua obra, inspirou uma infinidade de canções, livros, filmes, atitudes e tributos ao seu postulado criativo. Que descanse em paz o grande escritor jovem e poeta das estradas. Ele está no meio de nós. *artigo publicado no jornal Zero Hora em 23 de outubro de 1999 |
Uma pincelada muito bem pintada. |